A história de Sailor Jerry (1911-1973)
Aclamado como o pai do estilo tradicional, Sailor Jerry viveu uma vida definida por sua arte e fortes crenças pessoais.
Considerado por muitos colegas como o tatuador mais importante de todos os tempos, Norman Keith Collins, mais conhecido como Sailor Jerry, é um dos mestres e maiores expoentes das tatuagens do estilo tradicional americano. Os tatuadores da época afirmam que nenhum tatuador fez mais por esta arte do que Jerry.
As tatuagens tradicionais têm sua origem no estilo que se formou na época da Primeira Guerra Mundial, graças à sua popularidade entre os integrantes das Forças Armadas, principalmente os marinheiros. Os temas clássicos desse estilo se desenvolveram a partir das tatuagens japonesas irezumi, quando, no final do século 19, pessoas ricas e bem relacionadas da Europa e da América podiam viajar para o Japão logo após o país abrir suas portas depois de um longo período de reclusão, conhecido como Sakoku. Esses ocidentais ricos costumavam fazer tatuagens como lembranças. No início do século 20 as tatuagens já haviam se tornado populares entre as forças armadas, e os primeiros estúdios de tatuagem começaram a abrir, e é daí que vem o estilo de Jerry.
Jerry se tornou mundialmente famoso por seus designs icônicos, que continuam a inspirar e influenciar a cultura da tatuagem até hoje. Vamos dar uma conferida na vida de um dos tatuadores mais influentes de todos os tempos.
1911-1927, um jovem rebelde
Norman Keith 'Sailor Jerry' Collins nasceu em 1911 em Reno, Nevada, embora tenha passado a infância em Ukiah, no norte da Califórnia. Foi uma época bem próxima da virada do século e beirando o velho oeste. Aos 10 anos, seu pai o apelidou de "Jerry" depois que ele percebeu uma disposição semelhante entre o jovem teimoso e a mula geniosa da família.
Mas Norman não ficaria na Califórnia por muito tempo. Ele saiu de casa ainda adolescente, embarcando ilegalmente em trens de carga e pegando carona pelo país, seguindo o caminho de tantas outras pessoas que estavam cansadas de perseguir o ideal do Sonho Americano que era onipresente na época. Foi nessa época que ele descobriu a arte da tatuagem ponto a ponto da mão de um homem chamado "Big Mike" de Palmer, no Alasca. Ele começou a praticar com qualquer ferramenta que tivesse à mão, fazendo suas próprias agulhas e tatuando a pele de moradores de rua que estavam dispostos a fazer uma tatuagem em troca de um vinho barato.
1927-1930, Aprendendo a tatuar com os mortos
Eventualmente, Norman desembarcou na movimentada metrópole que era a cidade de Chicago no final dos anos 1920, a então casa de Al Capone. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os estúdios de tatuagem se tornaram populares entre os marinheiros. A introdução da máquina de tatuagem baixou consideravelmente os preços e ajudou a fazer com que as tatuagens se tornassem algo que a classe trabalhadora pudesse pagar.
Lá ele conheceu, em 1927, seu mentor, Gib "Tatts" Thomas, que o ensinou como usar uma máquina de tatuagem com o auxílio de cadáveres no necrotério, graças a um amigo de Gib que trabalhava no turno da noite e permitiu que eles praticassem. Ao longo do ensinamento, era comum que os mentores pregassem peças nos alunos e a história diz que Thomas, ao ver que Norman estava pronto para começar a tatuar pessoas vivas, o trouxe como de costume para o necrotério durante o turno da noite. Uma vez lá, ele o deixou em uma sala com um cadáver deitado sobre uma mesa e coberto com um pano. Depois de preparar tudo, Norman levantou o lençol para começar a tatuar e o suposto cadáver, que na verdade era funcionário do necrotério, levantou-se aos berros, dando um susto terrível no jovem aprendiz, para a diversão dos demais.
Chicago era uma cidade com bases militares e é onde Norman costumava tatuar cadetes da Academia Naval dos Great Lakes. Após 3 anos tatuando marinheiros e sendo influenciado por eles, decidiu se alistar na Marinha em 1930, aos 19 anos. É aqui que o 'Sailor' seria adicionado ao seu apelido. Foi durante essa fase que Sailor Jerry desenvolveu um grande amor por tudo relacionado à vida de um marinheiro.
O tempo que Jerry passou no mar tornou-se uma influência avassaladora em sua vida. Ele gostava da camaradagem da Marinha e as antigas tradições marítimas se tornaram o tema que ele usou em seu trabalho até a sua morte. Mais importante, a Marinha levou Jerry através do Pacífico para a China e o Japão, uma jornada que estendeu seu interesse de toda a vida pela arte e cultura asiáticas. Ele foi enviado para vários portos na Ásia antes de pousar no Havaí no início dos anos 1930. As ilhas tropicais pareciam feitas sob medida para o jovem Jerry. O fluxo constante de marinheiros pelos portos o mantinha conectado à sua amada Marinha, enquanto a movimentada Chinatown de Honolulu alimentava seu fascínio pela cultura asiática. Jerry fez do Havaí sua casa.
1930-1942, Havaí e a segunda guerra mundial
Jerry se estabeleceu em Honolulu e trabalhou como tatuador. Ele descobriu que a área de Chinatown era um lugar perfeito para se instalar, enquanto os marinheiros que iam e vinham do porto local se moviam pela área em busca dos bares e clubes burlescos da região.
Lá, ele continuou trabalhando como tatuador até 1941, ano em que os japoneses bombardearam Pearl Harbor. Este evento afetou profundamente Jerry como residente do Havaí, um fervoroso patriota e ex-membro da Marinha. Ele queria se alistar novamente, mas falhou no exame médico, então se alistou na marinha mercante, passando grande parte da Segunda Guerra Mundial navegando em perigosas águas japonesas, entregando suprimentos para diferentes bases navais e do exército. Ele sobreviveu a três ataques a seus navios.
Novo estúdio em Honolulu
Entre as viagens, Jerry abriu um novo estúdio de tatuagens na Chinatown de Honolulu, com um tatuador chinês chamado Tom. Eles chamaram a loja de "Tom e Jerry". Eles atendiam aos muitos marinheiros e soldados que durante aquela época fizeram de Pearl Harbor sua casa. E não ofereciam apenas tatuagens para sua clientela militar. Eles também montaram uma cabine fotográfica com uma cabana de palha e uma dançarina de hula (interpretada pela esposa chinesa de Tom), onde os homens alistados podiam tirar uma foto para recordação de seus tempos no Havaí.
Ao retornar de uma de suas incontáveis viagens, Norman se deparou com seu estúdio fechado - Tom e sua esposa haviam ido embora - e com uma ilha que já não era mais o paraíso tropical que ele conhecia. O Havaí estava a caminho de se tornar um estado por direito próprio e estava lotado de marinheiros, soldados e turistas.
Ele reabriu o estúdio, mas não durou muito. Jerry era muito patriota - provavelmente hoje seria conhecido como um conservador libertário de direita - e discordava de muitas medidas governamentais. Ele via o IRS como um inimigo se intrometendo em seus negócios e se recusava a pagar impostos pela arte que criou. Ele fechou o estúdio e continuou tatuando clandestinamente.
Anos de ostracismo
A teimosia era a marca registrada da lenda Sailor Jerry, lembre-se que o pai dele o chamou de Jerry porque ele era genioso como a mula da família, e nesses anos de protesto contra o governo, ele parou de fazer tatuagens legalmente por quase uma década. Ele se dedicou a trabalhar nos estaleiros locais, além de oferecer passeios de barco para os turistas que desejavam conhecer Pearl Harbor. Mas, clandestinamente, Jerry continuou a tatuar aqueles que sabiam como achá-lo. Muitas vezes, após um longo dia de trabalho, ele tinha que fugir pelas escadas dos fundos de seu apartamento para evitar o encontro com clientes que procuravam por suas tatuagens.
Finalmente, em 1960, ele foi convencido a voltar aos negócios por Bob Palm, um tatuador californiano que se estabeleceu no Havaí, e juntos abriram o estúdio Hotel Street na 1033 Smith Street. Infelizmente, a sociedade não durou muito. O Havaí era um lugar muito diferente na época e Bob, um homossexual, foi escoltado para fora da ilha pelos militares sob acusações de "atos imorais".
Jerry estava feliz vivendo uma vida isolada no Havaí, onde sua principal clientela eram os jovens militares estacionados por lá. Ele era um tatuador prolífico, trabalhando sem parar durante os dias de pagamento militar em seu pequena estúdio em Chinatown. Quando a freguesia dos militares diminuía entre os dias de pagamento, Jerry tatuava os moradores locais, concentrando-se nas jovens das ilhas. Sim, ele também foi o primeiro tatuador a comercializar tatuagens para mulheres, chamando-as de "Feminigraphics, a última novidade em tatuagens femininas delicadas".
Ironicamente, foi nessa fase que Jerry foi mais influenciado pela cultura japonesa e pelos tatuadores mais renomados da época - os mestres japoneses conhecidos como "Horis", com quem ele se correspondia para aprender mais sobre o estilo asiático. Ele fez isso graças à comunicação facilitada por um empresário de Tóquio, o Sr. Kida, que frequentemente visitava o Havaí e Pinky Yun em Hong Kong. Jerry trocou segredos de tatuagem de valor inestimável com os mestres de tatuagem Horiyoshi II e Kazuo Oguri. Jerry incorporou em seu trabalho técnicas japonesas avançadas, como sombreamento de água e perspectiva de fundo. Os resultados surpreenderam e revolucionaram o mundo da tatuagem nos anos 60. Ele criou um estilo próprio que chamou de "Horimono", uma adaptação de motivos tradicionais americanos ao estilo japonês, combinando imagens japonesas e americanas em um estilo único e original. Isso também o deixava continuamente frustrado pois outros artistas copiavam seu trabalho, a ponto de se recusar a tatuar clientes que tivessem trabalhos de tatuadores que ele não respeitava. Em suas próprias palavras, "É a mesma velha história, fazemos os trabalhos artísticos e aumentamos a demanda e os aproveitadores colhem os frutos. E o pior é que a maioria das pessoas são tão cegas esteticamente que não conseguem enxergar a diferença..."
Os mestres japoneses não foram os únicos tatuadores com quem Jerry se relacionou durante esse período. Jerry acreditava que era importante com quem você se associava, pois ele achava que a tatuagem era algo secreto, algo a ser protegido. Ele se uniu contra os "artistas da sarna" ou aqueles tatuadores que buscavam a atenção da mídia, e é por isso que odiava o famoso tatuador Bert Grimm, bem como as gerações que o seguiram, como Lyle Tuttle. Ele também trocava correspondências regularmente com artistas que ele respeitava em todo o mundo; homens como Brooklyn Joe Lieber, Owen Jensen, Paul Rogers, Long Andy Libarry e seu ex-mentor Tatts Thomas. Tatuadores da geração seguinte, como Mike Malone e Zeke Owen, também se corresponderam com Jerry. Em um lugar privilegiado estava um jovem artista californiano chamado Don "Ed" Hardy. Os dois artistas passaram a trocar cartas quase que diariamente para discutir sobre tudo, desde a filosofia oriental à política, e Jerry revelou seus segredos mais bem guardados sobre a tatuagem. Os dois homens planejavam abrir juntos um estúdio de tatuagem no Havaí, que eles chamariam de The Mid Pacific Tattoo Institute.
Em 1972, Jerry convidou um pequeno grupo de tatuadores para o Havaí, no que alguns consideram ser o primeiro evento internacional de tatuagem. Hardy, Malone, aprendiz de Sailor Jerry Shanghai Kate, Des Connely da Austrália e o japones Oguri. Foi durante essa mini convenção que Oguri convidou Hardy para se mudar para o Japão, acabando com a ideia de Jerry de abrir uma loja de tatuagem com Ed Hardy.
Embora hoje haja quem pense que Sailor Jerry é uma espécie de personagem fictício, Jerry era um verdadeiro marinheiro, uma pessoa real. Tatuar foi um dos pilares de sua vida e, como já mencionamos, ele criou seu próprio estilo de tatuagem, mas Jerry era um verdadeiro polímata, e perseguiu cada um de seus hobbies até atingir o nível profissional. Ao longo de sua vida, ele também trabalhou como capitão de uma escuna que percorria o Havaí, tinha seu próprio programa de rádio se autodenominado "Old Ironsides" na KRTG, durante o qual ele alternava entre comentários políticos e lendo sua própria poesia, e tocou sax em uma banda de jazz. Ele pilotou uma Harley Davidson com um sidecar azul claro até o fim de seus dias. Ele aprendeu eletrônica sozinho, o que lhe permitiu melhorar e inovar as fontes de alimentação e máquinas de tatuagem. E não foi a sua única inovação no mundo da tatuagem, já que também inventou a configuração magnum das agulhas para que a pele ficasse menos traumatizada, e ampliou amplamente a paleta de cores, alcançando cores como o roxo que ninguém havia conseguido até então. Mais importante, ele liderou a introdução de produtos de uso único e esterilização hospitalar na indústria da tatuagem, com o objetivo de evitar a disseminação de patógenos transmitidos pelo sangue nos estúdios de tatuagem. Sem dúvida, todos aqueles que se dedicam ao mundo das tatuagens hoje devem muito a ele.
Seu legado
Sailor Jerry morreu no dia 12 de junho de 1973, e suas instruções eram muito precisas: ela queria que seu estúdio fosse transferido para seus protegidos, Don Ed Hardy, Zeke Owen ou Mike "Rollo Banks" Malone. Se nenhum dos três assumisse o controle do estúdio, ele deixou instruções para eles tocaram fogo no negócio. Ed estava no Japão aprendendo com Hori Oguri, e Zeke tinha seu próprio estúdio, então foi Rollo Banks junto com sua sócia na época, Shanghai Kate, que tomou posse da loja e tudo que havia nela em troca de U$20.000. Eles o renomearam o estúdio como China Sea Tattoo e Mike o administrou por quase 25 anos.
Desde então, uma série de eventos polêmicos aconteceram que fizeram com que garrafas de rum, roupas e muitos outros itens fossem lançados com a imagem de Sailor Jerry. Segundo pessoas que o conheceram, Jerry deve estar se revirando em seu túmulo vendo sua imagem ser tão explorada. Você pode ler este artigo para saber mais sobre o tópico.
Norman está enterrado na sepultura 124/Seção T do Cemitério Memorial Nacional do Pacífico em Honolulu, um cemitério que está localizado na cratera de um vulcão extinto na ilha.
Os designs de Jerry ainda são muito populares em estúdios de tatuagem em todo o mundo.